Não sou cadeirante, mas e se eu
fosse?
Se eu fosse, por algum acidente,
missão divina ou destino, definitivamente minha vida seria diferente. Assim
como se eu fosse indígena, asiática, ou árabe, minha vida provavelmente também seria
diferente. De todas as formas, estar permanentemente numa cadeira de rodas nos
desperta medo, desconfiança, desespero, impotência entre uma série de outras
emoções inatas ao ser humano.
Foi assim que iniciei meu dia
semana passada, participando do programa “Não sou cadeirante, mas e se eu
fosse?” liderado pelo time de Acessibilidade, Sustentabilidade e Legado do
Comitê Rio2016. Inicialmente a experiência me chamou atenção por engajar muitos
colegas que nunca conviveram com pessoas com deficiência, muito menos
vivenciaram quaisquer experiências em cadeiras de rodas. Eu que vim da Educação
Física, e de um programa de mestrado e doutorado em Atividade Física Adaptada,
já tinha feito rapel vendada, andado de bicicleta sem enxergar, jogado Basquete
e Rugby em cadeira de rodas...Enfim, na minha cabeça ingênua, já tinha tido
várias oportunidades de transformar minhas percepções em relação às pessoas com
deficiência.
Me lembro de um curso que fiz em
2004 com o professor Horst
Strohkendl, um dos precursores do Basquete em cadeira de rodas, onde aprendi
mil manobras, saí com as mãos esfoladas, ganhei um livro dele pelo empenho e
dedicação e ouvi a seguinte exclamação: Menina, agora é só escolher a altura da
lesão! Saí de lá feliz da vida e cheguei em casa empolgada contando para meu
saudoso paizinho que já podia ficar paraplégica! Nem preciso contar a cara de
desconforto com a qual ele me olhou. Ainda me mandou não ficar sentando nessas
coisas que isso atrai tragédia...Logo ele que dirigia como Louis Hamilton,
tinha uma moto Hayabusa, lutava Jiu-Jitsu e comia como se não houvesse amanhã.
O que atrai o quê pai?
Bom, todos esses fatos e
histórias sempre me fizeram olhar para as pessoas com deficiência como pessoas.
Ora simpáticas, ora grosseiras, ora divertidas, ora mal-humoradas. Digo isso
não só pela minha irmã, que me fez conviver com a deficiência desde seu
nascimento, mas por todas outras pessoas que conheci. Não é a deficiência que
as torna mais gentis, merecedoras de pena ou de um sorriso.
O programa “Não sou cadeirante”
tinha duas versões: a light e a extreme. Eu que quase não gosto de uma
atividade hard core faca na caveira (depois faço outro post sobre a bravus
race), me inscrevi no extreme (você passa metade do dia e sai para almoçar com
a cadeira). Convenci mais três amigas entusiastas da causa e do movimento
paralímpico (Vanessa, Carla e Luca) a irmos almoçar no centro do Rio. No verão
de 47 graus, 55 na hora do almoço, pegar o metrô e ir andando pelas famosas
calçadas cariocas de pedra portuguesa, numa cadeira de rodas não parecia nem
atraente, nem agradável. Mas eu queria muito passar por isso. E lá fomos nós.
Problemas para atravessar a rua
do comitê que estava sendo recapeada, fui quicando e sendo empurrada até o
outro lado. Também tivemos que correr para não dizer adeus à mim e à cadeira da
Ottobock pois o tempo era muito curto
para fazer a travessia com cautela. Na estação Estácio não paguei o bilhete
(achei boa essa parte) e fui recebida por um moço fardado (devia ser só um
uniforme, mas me lembrou um capitão do Bope). Ele me ensinou a usar os dois
elevadores de cadeiras para chegar até os vagões. Enquanto eu descia apitando
igual a porta do banco quando entramos com moedas na agência, todos que
aguardavam o trem estavam me olhando. Eu com cara de quem ia descer uma
montanha russa e as meninas me filmando como se fizessem um documentário para Discovery ou Animal Planet. 20 minutos depois entramos no metrô.
No vagão subi sozinha e
estacionei na vaga de cadeirante, depois que a Carla pediu que desocupassem
aquele lugar. Descemos 3 estações depois e como num passe de mágica, lá estava
outro moço, simpático, fardado me esperando (também gostei dessa parte).
Enquanto me empurrava, com um ar de bugueiro do Ceará me perguntou: Você quer
subir com ou sem emoção? Eu pensando...ele me oferece emoção sem nem saber meu
nome? Adivinhem minha resposta, com emoção claro...e lá subimos a escada
rolante, ele empinando minha cadeira e ainda quase fungando no meu cangote.
Será que se eu fosse homem também seria assim? Mas confiei nele, era minha
saída. Só não contei que esse era um programa do comitê organizador dos Jogos
Rio2016. Fiquei com medo dele achar que estávamos de brincadeira e me soltar
escada abaixo.
Nessa hora, perguntando como eles
fariam se um time de cadeirantes chegasse junto no metrô, ele ao invés de me
responder me contestou dizendo: O que você joga? Eu disse...hum, na verdade não
jogo, sou tipo técnica... (de onde eu tirei o “tipo"?) Ele complementa: Do que? De Rúgby em cadeira
de rodas! Moço vamos mudar o assunto, já estou quase na saída da estação...,
até lá fomos nessa, ele me empurra eu converso as meninas riem e filmam.
Tirando a minha cara de pau e o receio
de não ser levada a sério, a experiência foi positiva, apesar do trajeto ser
mais demorado, eles estavam preparados para me receber e ainda são treinados
para dar mais “emoção”, que significa agilidade e menos tempo para subir as
escadas.
Nas ruas eu só pensava na preguiça
que devia dar todos os dias em sair de casa sem saber o que se vai enfrentar.
Estava numa calçada e queria desviar de um pingo encardido de ar condicionado e
não teve como, foi um no olho e outro na minha calça, ai que raiva! E assim
deve ser o tempo todo com o cadeirante...desviar de poças, segurar um
guarda-chuva e empurrar a cadeira, não contar com o recapeamento do asfalto bem
no dia que você está com pressa. Pressa, inclusive, é uma palavra que não pode
muito existir no vocabulário dos cadeirantes...É necessária muita organização e
planejamento para sair de casa, principalmente se for sozinho.
Decidimos voltar de taxi e depois
que me transferi (tentando não demonstrar os movimentos nas pernas) de dentro
do carro escuto: Ih...essa cadeira não cabe não...Senhor, só de pensar em sair
de novo do taxi, montar a cadeira e procurar outro naquele calor...Só conseguia
imaginar que mal humor deve dar em quem realmente não tem como levantar da
cadeira e resolver os problemas andando!
Resumo do desafio: sozinha eu não
conseguiria chegar até o restaurante!
Nada do que eu já tinha
vivenciado na Adaptada se pareceu com essa experiência. Por isso terminei o dia
querendo ficar mais na cadeira para ver outras coisas e pensando: Pena que
mesmo com uma super cadeira eu não seria capaz de fazer o que queria sozinha...
Não sou cadeirante... mas e se eu
fosse?
Talvez, o que eu fosse,
dependeria do como eu reagiria diante das desvantagens sociais que uma deficiência
acarreta, de como eu responderia às adversidades diárias, à uma nuvem negra
arquitetônica que me acompanharia quando na cadeira de rodas numa cidade
inacessível. Dependeria do como eu interpretaria os olhares vindos de cima, de
como acordaria todos os dias pensando que hoje vou ter um dia feliz. Dependeria
do como o meio e as pessoas estariam prontos para me receber como uma cidadã,
que tem meios para exercer seus direitos de ir e vir, de acordar de bom ou mal
humor, independentemente de estar sentada numa cadeira, com muletas, próteses
ou correndo com minhas próprias pernas.