O Blog

No começo eu só queria contar detalhes da minha vida em Toulouse para minha família e amigos curiosos. De repente comecei a ter necessidade de escrever, foi nascendo um diário de crônicas, foram surgindo seguidores, leitores, a vida foi tomando outro curso. Após 1 ano e quatro meses na França, idas e vindas para o Brasil estou diante de mais um ponto de bifurcação, voltando às minhas origens para dar continuação ao blog e a vida. Você está convidado a participar desses próximos capítulos e a se perder e se encontrar nessas novas estradas estrábicas.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Julgamento norueguês


5 anos de blog. Senti um orgulho, uma alegria de ver o blog ativo, ainda que com uma frequência de postagens menor. Adoro quando algumas pessoas me cobram mais textos. Mas vejam, desde que comecei a escrever há 28 minutos, já tive que parar três vezes: uma fugindo com o computador do trombadinha, evitando caracteres estranhos na escrita, outra para tirar ele de cima do tapete enquanto regava minha sala de mijo, desculpem, urina (desfralde começando) e outra para ligar na casa da "bobó" e falar com os caninos. Fofo, mas totalmente improdutivo.


Fiquei passeando pelos primeiros textos, lembrando das situações, das pessoas, dos sentimentos daquela época, nostalgia boa, registrada basicamente em palavras e algumas fotos. Uma agenda de adolescente da era moderna, com teor mais adulto. Nos diários costumávamos escrever sem o menor senso de "superego" controlando a gente, sem o menor medo de sermos julgados, porque sabíamos da confidencialidade das informações, da segurança que estruturávamos em torno do diário e de todas as ameaças e punições para quem ousasse em tentar ler. No blog é diferente. Na vida é diferente. Sempre há julgamento. Nosso e dos outros.


É triste na minha opinião, mas não há nada que façamos que esteja livre de julgamentos. Essa semana este foi o tema do filme. Em diversas situações fui levada a refletir sobre isso.

Exemplifico: Bloco de carnaval tomando conta da minha rua, do "meu" bairro e nós saindo para correr na lagoa. Resultado: pessoas com alto teor alcóolico no sangue, rindo e debochando dos "atletas". Eu ri também, até porque já estive no lugar deles, nesse mesmo carnaval. 
Meu marido chateado e falando sobre um problema e eu não consegui ouvir calada, apenas emprestar os ouvidos, os ombros. Falei tagarela, julguei toda a situação e acho que piorei o sentimento ruim dele. 
No trabalho acho que é direto, julgamos a hora que as pessoas entram, saem, tomam café, vão com tal roupa, se comportam de tal maneira numa reunião e por aí vai.

Fui encontrar a Aninha (minha amiga de infância que está morando na Noruega) num bar com outras amigas. A Ana já fala pelos cotovelos, sentou à mesa e três horas depois já me sentia phd em cultura e hábitos noruegueses. Mas o que mais me chamou atenção, foi o assunto "não julgamento" de novo. A magricela  nos contava com certa aceitação, o quanto eles respeitam a individualidade do outro, seja esse outro o vizinho ou seu próprio filho. É como se ninguém se sentisse no direito de dar opinião sobre a vida de ninguém. Nós, amigas ouvintes, fazíamos mil perguntas, ríamos e imaginávamos como não somos capazes de agir assim. Alguém vem te contar um problema e você ouve. Ponto final. Você não pergunta, não critica, não reage…Nada brasileiro. 
Ontem, para arrematar a semana, o tema da palestra, ministrada pelo nosso iluminado amigo no centro espírita que frequentamos, foi "Ser melhor". Onde a discussão me pegou? Abstenção do julgamento, aproveitando a quaresma, jejum de juízo de valor. O que faz bem para mim pode não te agradar, o que te faz feliz pode não me dar prazer, ainda assim podemos ser amigos e aprender um com o outro. A beleza das diferenças, o incômodo de aceitar o outro, o adeus aos melindres.

Em dezembro passei por um dos momentos mais tensos na minha experiência materna. Chegando da confraternização do escritório, sozinha com Francisco, ele se prendeu para dentro do apartamento, sozinho, me deixando do lado de fora sem chave, com uma maçaneta que não abria por fora. Quando se deu conta, no mesmo segundo em que batera a porta, começou a chorar e gritar compulsivamente. Eu gelei do couro cabeludo à unha do pé. Embora quisesse sentar e chorar com ele, corri, chamei a vizinha e pedi socorro, grampo, chaves e uma ligação para um chaveiro. Poucos minutos se passaram, mas foram suficientes para eu achar que tudo de ruim poderia acontecer. Ele podia pegar uma tesoura, cortar a rede e se jogar da janela; ele podia brincar com as facas, se afogar na privada…Eu foquei em mantê-lo calmo e comigo junto a porta. Tentei forçar a maçaneta, arranca-la e dei uma ombrada na porta. Gelei novamente quando vi que apenas com esse encontro a porta abriu uma fresta e o trinco entortou. Coloquei meus dedos naquele espaço, chamei o Francisco para o lado. A sensação que tive foi de ter conseguido uma vantagem de 12 pontos numa luta faltando 10 segundos para acabar. "Se consegui fazer isso, agora vou derrubar essa porta!" Dito e feito, Francisco afastou e eu fui pra cima com o corpo inteiro, a porta abriu, quebrou madeira, gesso, trinco…Peguei meu filho no colo, e durante aquele abraço profundo, de "nós conseguimos" as vizinhas vieram, olharam assustadas, um silêncio pairou. Eu de olhos fechados, Francisco soluçando. A Marília perguntou, "Como você fez isso"? Eu respondi "Não sei!". Não senti dor, não fiz força, só precisava resolver, tirar meu filho daquela situação. Não adiantava ligar para o Maurício (estava muito longe), o chaveiro ia demorar, éramos eu, a porta de madeira, o desespero e Francisco.

Quando contei para o pai do socorrido, ele olhou para o estrago, ficou surpreso, perguntou como tinha sido a festinha do trabalho e foi tomar banho com Francisco. Ele não sabia o que tínhamos acabado de passar, não sabia o eu sentia. Provavelmente pensou, havia um problema, ela resolveu. Eu mesma não acreditava. Alguns se perguntaram como eu deixei aquilo acontecer, outros certamente acharam que a cervejinha tomada a tarde me deixou mais lenta, outros ainda questionaram a maçaneta que tenho em casa, ou a porta vagabunda e fácil de arrombar. Eu só queria sentar e chorar, queria ouvidos, ombros e abraços de compaixão. Tudo, menos julgamentos.

O Maurício se deu conta disso depois e foi legal, fomos parceiros na dor no corpo sentida no dia seguinte, na ressaca moral, no 'como consegui?', no 'minha mulher é phoda'.



Ainda não troquei a bendita maçaneta, mas esse texto se dirige a qualquer um, principalmente a mim,  leitura em voz alta, porque eu a cada dia quero respeitar mais, julgar menos e tentar aceitar e acolher o outro, escrever no blog  sem medo do que possam pensar de mim, apenas agradecer a empatia e ternura de quem acompanha esse diário, seja novo ou leitor há 5 anos.