E disse Liesel: “Eu amei e odiei as palavras” terminando a história da
“Menina que roubava livros” e que se apegou às palavras para sobreviver às destruições
da segunda grande guerra. Mesmas palavras que Hitler, o fuhrer, utilizou para
conquistar sua fanática, suástica legião. Mesmas palavras que eu uso para
chegar até você ou à mim mesma. Ora perdidas, ora amarradas, ora barulhentas,
ora caladas. As palavras.
Acho que como Liesel, eu
sempre me apeguei às palavras, talvez uma explicação para eu gostar tanto de
aprender outras línguas, escrever cartas, falar pelos cotovelos (escrever um
blog!). Me lembro do pequeno príncipe dizendo que a “linguagem é fonte de mal
entendidos” e quiçá por isso muitos escolham falar com o corpo, com as mãos,
com os olhos.
Os meus olhos por exemplo,
costumam ser notados pelos outros. Não por sua cor, embora minha mãe pudesse
ter sido mais generosa e me transmitido os genes da cor azul, ao invés da
tendência à celulite. Também não é pelos cílios grandes e penteados que não
tenho, nem por serem olhos grandes e avassaladores ou número 43. Meus olhos são
pequenos, franzidos e...sim, tortos. Sou estrábica, mas muita gente (os inconvenientes)
me chama de vesga. Talvez você nunca tenha notado, mas isso é curiosamente
real.
A minha mãe, pessoa muito preocupada com a beleza desde minha infância,
implicava com várias coisas em mim e assim eu usava pregadores de roupa para
afinar o nariz, calça pantalona para esconder o bumbum grande e as pernas
finas, botinha de chumbo para desentortar os pés, tênis 2 números menor para
disfarçar o formato adolescente L, camisa até o joelho e 3 tubos de pasta
d’agua para não ficar negra na praia. Até o dia em que ela se superou e me levou
ao médico, cismando com meu estrabismo. E eu pensando porque raios não nasci
mais bonitinha, ia ganhar várias horas jogando queimada, assistindo Indiana
Jones, comendo pão de queijo...
---Olha doutor, presta bem atenção nos olhos dela (meus olhos nessa hora diziam:
é agora! Vou assassinar esses dois!), são tortinhos não são?
E eu olhando de um lado para outro, imitando a Monalisa com fome, até que
o tal do doutor emite o diagnóstico.
---É...me parece que um olho está atrasado em relação ao outro, como se
demorasse mais tempo para chegar ao mesmo lugar. Eu só pensei: tá! E daí?--- Ele
complementou:
---Então ela precisa exercitá-los para que eles se sincronizem. Continuei pensando: Como? Com música, seu infeliz?
E horas depois estava eu em casa, frente ao bendito, maldito espelho com
uma caneta na mão, diante do rosto, seguindo-a de um lado para o outro, prestes
a enfiá-la em um dos meus olhos ou nos de quem me visse fazendo aquilo.
O que há de errado em um olho chegar um pouquinho mais tarde que o outro?
Enquanto um se desespera vendo o mundo desabar, o outro pode ainda estar
aproveitando a última paisagem.
Eu até vejo um lado bom em tudo isso (só não sei qual olho vê primeiro).
Acho que no fundo, são esses tais olhinhos dessincronizados que hora ou outra são
conquistados, hipnotizados, encantados, emocionados quando saem conversando por
aí. São esses olhos confusos que se apegaram às palavras do papel e do olhar, para
tentar enxergar no outro uma beleza maior que um nariz empinado, um olho azul ou
um pé de princesa.
E com eles dois ao mesmo tempo, eu olho para essas palavras fixamente, na
ânsia de dizer um dia, que elas me salvaram, ainda que como Liesel, eu já tenha
odiado palavras e olhos alguma vez.